
Eduardo Vasco
A Bósnia e Herzegovina tornou-se um Estado independente mas foi dividida em duas Entidades autônomas.
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Segundo os dados do Centro de Documentação e Pesquisa, sediado em Sarajevo, na Guerra da Bósnia morreram cerca de 100 mil pessoas (66% bósnios étnicos, 25% de origem sérvia e 7,8% de origem croata) e houve o deslocamento de 2,2 milhões, sendo mais de 1 milhão de refugiados no exterior.
A Bósnia e Herzegovina tornou-se um Estado independente mas foi dividida em duas Entidades autônomas: além da Federação da Bósnia e Herzegovina, que reúne bósnios e croatas, com 51% do território nacional, foi reconhecida como Entidade a República Srpska que os servo-bósnios haviam declarado independente do Estado bósnio e que ficou com 49% do território do país.
No entanto, o Acordo de Dayton, assinado em 21 de novembro de 1995 e ratificado em 14 de dezembro do mesmo ano em Paris, não terminou com os conflitos bélicos nos Bálcãs. A Sérvia precisava ser destroçada ainda mais.
O Kosovo, província autônoma até meados da década de 1980, quando ainda pertencia à Iugoslávia Socialista, foi o palco dos confrontos no final dos anos 1990.
A população kosovar, composta 90% por albaneses étnicos, já havia experimentado tempos de agitação no início e no final da década de 1980. Em 1989, em meio a uma tensão e fortes distúrbios entre albaneses e sérvios, Milosevic, já o principal político da Iugoslávia, arrancou a autonomia outorgada ao Kosovo pela Constituição de 1974, e passou o controle do Kosovo e da Vojvodina para a Sérvia.
Com o clima de dissolução da República Socialista Federativa da Iugoslávia, o Kosovo proclamou-se independente em 1991, sendo, no entanto, reprimido pelas forças de Belgrado. Em 1996, começaram a ser fortemente organizados grupos separatistas armados e ataques terroristas contra o Estado iugoslavo, que agora era composto apenas pela Sérvia e Montenegro e que teve, em 1997, Milosevic eleito como presidente do país.
Segundo Noam Chomsky, o Exército de Libertação do Kosovo (ELK, principal força militar separatista kosovar) recebeu apoio financeiro e militar dos Estados Unidos. "Eles estavam sendo apoiados pela CIA naqueles meses".
Com os confrontos ocorrendo entre as forças do Estado iugoslavo e as milícias kosovares, a OTAN, após algumas ameaças, iniciou os ataques para desmobilizar o exército sérvio, em 24 de março de 1999. Os bombardeios continuaram até o dia 10 de junho, quando Belgrado recuou dos ataques às forças kosovares. A OTAN não precisou de permissão nenhuma da ONU, evidenciando já àquela altura como as Nações Unidas não passam de uma ferramenta de dominação do imperialismo sobre o mundo, que agem ou não apenas conforme a conveniência das principais potências.
Os ataques da OTAN foram considerados pelo Ocidente como "ilegais mas legítimos". Para Chomsky, "ilegal faz com que seja um crime de guerra. Mas eles disseram que isso foi legítimo porque era necessário parar o genocídio. E então veio a inversão usual da história". Ele ainda critica o que foi chamado de genocídio feito pelos sérvios contra os albaneses do Kosovo: "Se aquilo é genocídio então o mundo inteiro está coberto de genocídios."
Essa mesma "comunidade internacional" não reconhece a destruição de Gaza por Israel e o extermínio deliberado de ao menos 80 mil palestinos como genocídio. Pelo contrário, ela financia, arma e faz propaganda pelo genocídio de palestinos.
Após o final da guerra, o Kosovo foi administrado por quase oito anos como protetorado internacional e, em 2008, os países imperialistas o arrancaram da Sérvia. Contudo, a maioria das nações oprimidas do mundo, incluindo as da importância do BRICS, não reconhecem até hoje esse roubo de território: aquele território ainda é legitimamente sérvio. Apesar disso, parte das instituições internacionais segue os ditames imperialistas e permite que a Sérvia participe de forma desmembrada, como nos Jogos Olímpicos. Em 2006, o imperialismo também conseguiu separar Montenegro - um território sem nenhuma diferença nem verdadeira reivindicação nacional em relação à Sérvia.
A intervenção da OTAN na Iugoslávia teve como pretexto a "violação dos direitos humanos" e os "crimes contra a humanidade" cometidos pelas forças sérvias no Kosovo. Mas aquilo era uma farsa - vindo de quem patrocina verdadeiros crimes em Gaza. Como sempre, nada foi publicado na imprensa sobre os armamentos que utilizam urânio empobrecido, empregados pela Otan nos bombardeios à Iugoslávia.
Chomsky aponta como o verdadeiro motivo da intervenção da aliança ocidental na Iugoslávia as pretensões econômicas, em uma Europa Oriental que acabara de se inserir no sistema capitalista. A OTAN interveio porque a nação balcânica "não estava executando as reformas econômicas e sociais exigidas, isso significa que ela era o último lugar na Europa que não tinha se subordinado à série de programas neoliberais dos EUA, portanto ela teve de ser eliminada".
Além da ONU (que só observou) e a da OTAN (que agiu na matança de sérvios), outro mecanismo imperialista foi utilizado para destruir a Iugoslávia. O Tribunal Penal Internacional não buscou a incriminação dos violadores ocidentais do direito internacional, mas de Milosevic, bode expiatório de todas as guerras balcânicas dos anos 90.
O ex-presidente sérvio foi levado ao Tribunal, em Haia, onde acabou falecendo durante o processo de seu julgamento, em 2006, sob condições suspeitas. Ele não chegou a ser objeto de veredicto. Em março de 2016, o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia considerou que não encontrou provas suficientes para condená-lo pela limpeza étnica na Bósnia, crime do qual foi acusado. Segundo o órgão ( p. 1303):
No que diz respeito à evidência apresentada neste caso em relação a Slobodan Milosevic e sua filiação ao JCE [Joint Criminal Enterprise (associação criminosa)], a Câmara recorda que ele compartilhou e endossou o objetivo político do Acusado [Radovan Karadzic, líder radical dos servo-bósnios] e a liderança serva-bósnia para preservar a Iugoslávia e prevenir a separação ou independência da BiH [Bósnia e Herzegovina] e cooperou estreitamente com o Acusado durante esse período [1990-início de 1992]. A Câmara também recorda que Milosevic providenciou assistência na forma de pessoal, provisões e armamentos para os servo-bósnios durante o conflito. Contudo, baseado na evidência anterior, a Câmara, no que diz respeito aos interesses divergentes que emergiram entre os servo bósnios e as lideranças sérvias durante o conflito e em particular, as repetidas críticas de Milosevic e sua desaprovação das políticas e decisões tomadas pelo Acusado e a liderança serva-bósnia, a Câmara não está satisfeita de que houve suficiente evidência apresentada neste caso para constatar que Slobodan Milosevic concordou com o plano comum.
Importantes observações feitas sobre Milosevic também se encontram nas páginas 1035, 1241-1245, 1599-1599, 1896, 1903 e nota de rodapé 16612 (p. 2022) do mesmo documento.
Por outro lado, o ex-presidente croata Franjo Tudjman recebeu veredicto post mortem (ele faleceu em 1999) por ser corresponsável por crimes praticados na guerra. Quando da retomada da Krajina, em 1995, além da limpeza étnica de 150 mil servo-croatas, as tropas croatas atearam fogo nas aldeias sérvias e assassinaram centenas de idosos que permaneceram na cidade de Knin. Após esses acontecimentos, Tudjman afirmou à BBC: "Eu pensei que 70% dos sérvios permaneceriam. Eles veriam que a democracia croata protege os direitos civis. Os sérvios são os únicos culpados."
Durante esse período de guerra, até 1999, a intolerância étnica foi o pretexto para a extrema violência que tomou conta da região. Foram contabilizadas, segundo as estimativas do Centro Internacional para a Justiça Transicional, mais de 140 mil mortes e 4 milhões de desalojados.
As guerras na antiga Iugoslávia estão muito longe de serem exclusivas da "barbárie de povos primitivos e não civilizados", como prega a propaganda imperialista. Na verdade, esse argumento nunca passou de desculpa para manipular os conflitos étnicos na região a fim de dividi-la para conquistá-la e sugar seus recursos.
Para Jean-Arnault Dérens, essa foi a justificativa para dizer que os povos dos Bálcãs são os culpados pelo desencadeamento da 1ª Guerra Mundial: A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, teria sido apenas uma consequência da primeira, e aí residiria a causa de todos os problemas da Europa no século XX. [...] Retiram-se da leitura histórica, assim, 'detalhes' pouco importantes, como os choques imperialistas, o colonialismo, o fascismo, o nazismo. A fonte primeira de todos os males do século XX foi finalmente encontrada: é essa terra "ensopada de sangue" que constitui os Bálcãs."
O autor também lembra que as alianças entre as potências na 1ª Guerra forçaram os povos dos Bálcãs a lutarem entre si: "Contudo, foi nas trincheiras da guerra de 1914 que, pela primeira vez na história, os jovens croatas e os jovens sérvios receberam ordens de matarem-se entre si: os primeiros vestiam o uniforme austro-húngaro, enquanto o governo dos segundos era aliado da França e da Grã-Bretanha."