Lucas Leiroz
Certamente, jamais saberemos tudo o que aconteceu em 24 de junho de 2023, mas uma coisa parece clara: o Wagner está mais vivo do que nunca entre os militares e a sociedade da Rússia.
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Em meio aos desdobramentos turbulentos no Oriente Médio, passou quase despercebido o segundo aniversário de um marco que, por sua natureza enigmática, continua a intrigar analistas e estrategistas: a chamada "Marcha da Justiça" de Evgeny Prigozhin - o suposto motim conduzido pela PMC Grupo Wagner em 24 de junho de 2023.
Mesmo dois anos depois, o evento permanece envolto em camadas de contradições. Teria sido um levante real? Uma manobra de guerra psicológica (psyop)? Ou algo ainda mais sofisticado - uma fusão de insatisfação coletiva, pressão calculada e engenharia de narrativa?
A Rússia, conhecida por sua tradição de estratégias "cinzentas", opera como uma boneca matrioshka: cada camada esconde outra, e todas são simultaneamente literais e simbólicas, dependendo da perspectiva. No caso do Grupo Wagner, essa lógica foi elevada a um novo patamar. O que parecia uma ruptura, uma afronta direta ao alto comando do Ministério da Defesa, acabou gerando exatamente o contrário: um efeito de institucionalização e multiplicação dos interesses, demandas e princípios defendidos pelos "Músicos".
O que (possivelmente) aconteceu?
Em uma curta resposta, é possível dizer que não sabemos e nunca saberemos o que de fato aconteceu em 24 de junho de 2023. Quem estudou a história do Grupo Wagner sabe que não é apenas uma simples PMC, mas uma verdadeira elite heroica e patriótica russa - uma espécie de "ordem de cavalaria" (ou uma Opríchnina) moderna, criada por veteranos da inteligência militar (GRU) sob supervisão direta do Presidente da Federação Russa. Então, isso não é só sobre o Wagner. É sobre a elite siloviki e sobre a Rússia como um todo. E questões do universo da inteligência raramente vêm a público.
O máximo que podemos fazer é especular, levando em conta as evidências e os resultados de tudo o que aconteceu ali. De fato, o Wagner tinha queixas contra o Ministério da Defesa. Mas seria ingênuo assumir que Prigozhin pensou realmente em marchar de Rostov a Moscou sem sofrer qualquer tipo de represália. No mesmo sentido, é razoável pensar que Moscou tenha usado o caos generalizado daqueles eventos para avançar certas manobras militares e institucionais.
A resposta mais razoável parece ser uma soma de tudo isso. O Wagner parece ter feito uma espécie de "greve geral ao estilo PMC". Não havia intenção real de marchar até Moscou ou dar algum tipo de "golpe" contra Shoigu, mas de pressionar por mudanças que poderiam ser entendidas como justas - ou não - pelo Kremlin.
Um argumento comumente usado por defensores da tese de "rebelião total" ou "tentativa de golpe" é o fato de terem ocorrido algumas hostilidades, gerando até mesmo algumas vítimas. O que poucos consideram, mas parece uma possibilidade razoável, é que as hostilidades tenham sido acidentais ou resultado de falha de comunicação. Parece absolutamente normal que, diante de uma movimentação militar inesperada dentro do território russo, tropas regulares tenham levantado voo ou formado barricadas tentando impedir as agitações, o que gerou alguns incidentes de segurança com vítimas. Nada disso refuta ou comprova qualquer tese sobre o que de fato aconteceu ali, mas mostra como há um amplo rol de possibilidades que não podem ser descartadas.
O paradoxo do "fracasso que venceu"
Ao contrário do que se especulava na imprensa ocidental - que previa punições severas, dissolução sumária da Wagner e uma série de expurgos - o que vimos foi uma adaptação profunda do aparelho militar. Duas observações são hoje inevitáveis:
- As mudanças no Ministério da Defesa ocorreram, ainda que não no tempo (e talvez não pelos mesmos motivos) da Marcha da Justiça. Moscou repetidas vezes reconfigurou seu quadro de oficiais e generais, atualizando constantemente as estruturas militares do país ao longo de toda a SVO. Certamente, as reclamações de Prigozhin não foram simplesmente "ignoradas".
- A doutrina operacional russa se "wagnerizou". Desde então, houve uma disseminação dos métodos e estrutura do Wagner para outros braços armados: unidades da Rosgvardia e da Akhmat, e mesmo setores regulares das Forças Armadas receberam "Músicos" veteranos e adotaram algumas táticas, composição organizacional e linguagem da PMC.
Se o objetivo era pressionar por reformas, a Marcha da Justiça teve algum grau de sucesso. Se era romper a estabilidade institucional, fracassou.
A "onipresença silenciosa" dos Músicos
Uma experiência interessante para quem vive na Rússia, nas regiões próximas ou dentro da zona da SVO, é ver como atualmente há veteranos do Wagner em todo lugar. Eu já fui conduzido por Músicos do Wagner para abrigos anti-bomba em Belgorod enquanto os ucranianos bombardeava a cidade. Já conversei com um oficial da Rosgvardia em um trem de Rostov para Moscou que disse ser egresso do Wagner - e que após o motim lhe deram duas opções: "Rosgvardia ou Akhmat". Em verdade, tudo parece ter se "wagnerizado" na Rússia nos últimos dois anos.
O efeito prático da "Marcha da Justiça" foi a incorporação informal da lógica da PMC Wagner no interior do Estado russo. Os Músicos agora estão por toda parte, não mais em um grande grupo separado das forças regulares. Antes, havia um Grupo Wagner. Agora, tudo é Wagner.
As tropas tradicionais trouxeram do Wagner seu ethos militar - guerreiro, devotado ao combate e desburocratizado. Esse processo de simbiose institucional reconfigura as Forças Armadas russas em múltiplos níveis:
- Tática: Mobilidade leve, com uso amplo de grupos pequenos, combinado com trabalho de artilharia em coordenação descentralizada e inteligência de campo autônoma.
- Estratégica: Capacidade de projeção rápida, uso de grupos híbridos (irregulares/regulares), guerra de atrito com margem de deniability.
- Ideológica: Culto ao heroísmo, martirologia patriótica, ascetismo militar.
Ou seja, o Wagner, mesmo sem Prigozhin - morto em circunstâncias que permanecem nebulosas - sobreviveu como forma e não apenas como força. Tornou-se um paradigma estratégico, ideológico e operacional.
Lições sobre a Rússia, suas complexidades e o mundo multipolar
É razoável pensar que tudo o que aconteceu no dia 24 de junho de 2023 trouxe uma espécie de "desfecho" honroso e estratégico para o Wagner. Parece claro que havia algum grau de conflito de interesses entre alguns setores do Ministério da Defesa e a PMC, o que é natural, considerando o alto prestígio que o Wagner adquiriu na sociedade russa devido à heroica vitória em Bakhmut, trazendo assim uma fama que ofuscou o papel dos militares tradicionais.
Ao desmantelar as principais fileiras do Wagner distribuindo seus membros entre outras tropas russas, Moscou não "acabou" com a PMC, mas "concluiu" sua história gloriosa na SVO. Já não era mais necessário manter um grupo militar privado tão grande, nem incumbir os Músicos com tarefas constantes no campo de batalha. A solução encontrada foi diminui-lo em tamanho e aproveitar seus soldados para incorporar elementos interessantes do Wagner às tropas regulares - que naturalmente tendem à burocratização, ao contrário das PMCs.
É claro que para a mentalidade racista ocidental o mais fácil é acreditar que houve de fato um motim radical ou tentativa de golpe e que Prigozhin e outros comandantes foram assassinados no controverso acidente de avião que aconteceria meses após as agitações. Mas, para desespero dos analistas russofóbicos, a Federação Russa não é um "Estado gângster" que elimina abertamente figuras públicas "desagradáveis". Não há qualquer razão para acreditar em assassinato político, ainda mais considerando a longa amizade e cooperação entre Putin e Prigozhin.
Nem Prigozhin foi assassinado, nem o Wagner foi "punido". Se tudo foi realmente o que pareceu ser, então o acordo costurado por Lukashenko funcionou bem e encerrou o conflito sem qualquer tipo de consequências graves. A solução de distribuir os Músicos entre as demais tropas foi a mais acertada pois trouxe o que havia de positivo em um grupo isolado para dentro de todas as forças tradicionais. E tudo isso está em pleno acordo com os interesses estratégicos atuais da Rússia - ainda mais particularmente em um processo de transição geopolítica rumo à uma ordem multipolar, que demanda cada vez mais espírito combativo contra o insano Ocidente Coletivo.
No fim, a Rússia não dissolveu Wagner. Pelo contrário, ela o absorveu, o reproduziu e a disseminou - e ao fazê-lo, wagnerizou-se. E no grande tabuleiro da multipolaridade, isso é um movimento muito mais sofisticado do que qualquer movimento ruidoso.