
Bruna Frascolla
A história do Zimbábue e do túmulo de Cecil Rhodes - um santuário ecológico de um homem-deus - deveria ser mais conhecida pelo resto do mundo.
Escreva para nós: infostrategic-culture.su
Entre os defensores da causa palestina, são usuais as comparações entre o colonialismo praticado na África e o regime imposto por Israel aos habitantes da antiga Palestina Britânica. A praxe é comparar os bantustões sul-africanos aos palestinos sem cidadania em Gaza e na miríade de enclaves na qual vai se esmigalhando a Cisjordânia. Esta vem sendo comida pelas beiradas à medida que os colonos judeus vão tomando mais e mais terra, com o apoio do Estado sionista.
No entanto, quase ninguém fala do papel do ambientalismo na limpeza étnica na Palestina, e, por conseguinte, não é nada usual apontar a semelhança do colonialismo praticado lá e na África. Como relata o historiador Ilan Pappé em A limpeza étnica da Palestina, vilas palestinas inteiras foram transformadas em bosques de pinheiros europeus protegidos como reservas ambientais. Pappé defende o direito de os palestinos voltarem às suas casas, e a lei ambiental impede que as propriedades otomanas nas quais os invasores sionistas originários do Leste europeu plantaram seus pinheirinhos sejam novamente povoadas.
A mim, brasileira, a história dos palestinos expulsos para dar lugar a um deserto verde só pode lembrar as "desintrusões" promovidas por ambientalistas e antropólogos não-eleitos (porém chancelados pelo presidente Lula em diferentes mandatos) no Brasil. As desintrusões seguem acontecendo neste ano, mas caso mais drástico e notório ocorreu em 2005, com a criação da terra indígena Raposa Serra do Sol: uma área do tamanho de Portugal no fronteiriço estado de Roraima foi esvaziada para que uma diminuta quantidade de índios nômades pudesse vagar em condições similares à do neolítico, desassistida pelo Estado, passando fome e morrendo cedo de males remediáveis. Fazendas legais e produtivas foram expropriadas sem indenização. Um nome pouco mencionado ao se contar essa história é o do antropólogo Mércio Gomes, presidente da Funai à época, que hoje se apresenta como um defensor da mestiçagem e da nacionalidade brasileira.
Fato muito relevante é que Roraima fica na Ilha das Guianas, área cercada pelo mar do Caribe e pelos rios Amazonas, Negro e Orinoco. Conforme lemos em Máfia Verde (Capax Dei, 2001), da autoria de Lorenzo Carrasco, Silvia Palacios e Geraldo Lino, a área é há muito cobiçada pelo colonialismo inglês, e isso tem tudo a ver com a perda da Guiana Essequiba pela Venezuela e do Pirara pelo Brasil.
A tese do Máfia Verde é que o colonialismo inglês na África foi substituído por um "colonialismo invisível" no qual o Estado estrangeiro não está mais presente e atua por meio de ONGs. A WWF foi fundada então com o propósito de criar grandes reservas ambientais (os "parques nacionais") em países africanos, as quais são geridas por empresas privadas, e assim impossibilitar os africanos de se desenvolverem e de usarem os recursos naturais em seu território. Estes últimos, segundo uma cosmovisão malthusiana e racista, deveriam ser poupados pelos africanos para serem usados pelos oligarcas neocoloniais. Posteriormente, esse aparato foi trazido para o mundo ibérico, e, à falta de rinocerontes, leões etc., os índios foram usados como pretexto para criar desertos verdes com recursos inexplorados pelos Estados nacionais. Criou-se a Survival International para se ocupar de índios tal como a WWF cuida de bichos. Os autores do Máfia Verde não têm correspondentes na África, então não puderam ver, à época da redação do livro, o quão certos estavam.
No ano anterior, era lançado o livro Voices from the rocks (2000), do historiador e africanista inglês Terence Ranger, e a obra ganhou uma resenha do antropólogo Peter Fry, nascido na Inglaterra e naturalizado brasileiro após passar anos pesquisando a Rodésia. A resenha saiu em inglês no número 5062 do Times literary supplement e em português no livro A persistência da raça (2005), coletânea de textos do autor. Ambos os ingleses têm amplo conhecimento acerca do atual Zimbábue, antiga Rodésia, país onde repousam até hoje os restos mortais de Cecil Rhodes. Fica num conjunto de morros que, ao ser transformado numa reserva ambiental, parou de ser cultivado. Os ingleses transformaram o local numa reserva ambiental e impediram que os nativos cultivassem suas terras ancestrais. Hoje, o roubo das terras permanece inalterado, e o colonizador é tratado como uma divindade.
Por meio da resenha de Peter Fry, aprendemos que "os ambientalistas coloniais brancos proclamaram a autoridade de sua ciência para transformar os Morros em Parque Nacional e expulsar os fazendeiros africanos com seus 'métodos tradicionais perdulários'. Como Ranger explica, eles queriam 'salvar a natureza da humanidade africana'. Hoje em dia, são os ambientalistas africanos que querem retirar os habitantes da única área que continuou sendo cultivada pelos africanos. A Área Comunal Matobo fica 'em cima da faixa das áreas que especialistas em meio ambiente insistem em livrar de habitantes humanos'." Ou seja, houve continuidade no ambientalismo malthusiano durante a descolonização. Ressalte-se, então, que ao menos na Rodésia a criação de reservas ambientais era concomitante com o colonialismo clássico: as políticas coloniais "expulsaram os africanos das Fazendas Europeias e dos Parques Nacionais."
Pela resenha, podemos até ver que o nome "desenvolvimento sustentável" surge como uma reação ao ambientalismo abertamente contrário ao desenvolvimento: "O livro [...] entra num debate bem mais amplo, ficando ao lado dos defensores de 'desenvolvimento sustentável'. E propõe uma certa acomodação com aquilo que eles definem como 'tradição', em oposição aos defensores mais radicais de uma conservação tout court."
Vamos então dar então uma oladela na história do Zimbábue. Cecil Rhodes era dono de uma chartered company chamada Companhia Britânica da África do Sul, que tinha direitos sobre boa parte da África Austral. Rhodes e sua Companhia desenharam as fronteiras de Estados nacionais que surgiram na região - entre eles, a Rodésia, cujo nome vem de Rhodes, e que passou a se chamar Zimbábue após o fim do regime supremacista branco de Ian Smith. Assim, é justo dizer que Cecil Rhodes é, goste-se ou não, o fundador do Estado nacional que hoje tem o nome de Zimbábue.
Essa defesa de Rhodes como um fundador do Zimbábue foi ouvida por Peter Fry pouco depois de ir visitar o túmulo e encontrar "um grupo de alunos negros, suas mães e professoras, todos com suas roupas de domingo, agrupados em atitude reverente em volta do bloco de bronze, exatamente como tinham feito os rodesianos brancos do passado colonial." Ao comentar essa similaridade com um balconista zimbabuano na área, ouviu a resposta de que Cecil Rhodes foi um grande homem e fundou o país.
Que essa postura prevaleça, não é nada óbvio. Já houve campanhas para que os ossos fossem expatriados. No entanto, a escolha de Rhodes pelo seu local de sepultamento revelou conhecimento de antropologia cultural. Antes de Rhodes, o túmulo mais ilustre dos Morros Matopos era o de Mzikalizi, fundador da nação ndebele (uma das etnias que compõem o Zimbábue). Lá havia santuários autóctones. Quando as missões cristãs chegaram, estabeleceram-se nos Matopos para rivalizar com o culto autóctone. Por fim, criou-se o túmulo de Cecil Rhodes, que eclipsou tudo o mais.
E já que mencionamos religião, Peter Fry nota que no túmulo constam somente as palavras "Aqui jazem os restos de Cecil John Rhodes", sem "referência a qualquer divindade". Rhodes, explica ele, era "filho de um padre inglês da zona rural", mas "tinha deixado de fazer reverência ao Deus dos seus antepassados havia algum tempo." E em seguida aponta a ironia da situação: "Rhodes era o herói da Rodésia branca, uma Rodésia que Ian Smith lutava para manter nas mãos dos brancos em nome do que ele chamava de 'Padrões Cristãos Ocidentais Civilizados'." As coisas não mudaram muito, já que nos dias de hoje alguns self made men ateus como Elon Musk vêm sendo apontados como grande expoentes da gloriosa civilização judaico-cristã ocidental.
É curioso que um país como o Zimbábue esteja reconciliado com sua fundação, enquanto que os países da Ibero-América, que têm uma fundação tão mais bonita, são considerados fruto de genocídio, invasão e estupro. O mais razoável é concluirmos que Cecil Rhodes representa um modelo de civilização que se quer impor a nós: um mundo de apartheid racial, malthusiano, e que visa a privar da terra os povos não-eleitos. A história do Zimbábue e do túmulo de Cecil Rhodes - um santuário ecológico de um homem-deus - deveria ser mais conhecida pelo resto do mundo.