Eduardo Vasco
As normas estão sendo erodidas e as velhas certezas estão sendo desafiadas - temos de agir em conformidade"
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Essa é a chamada que acompanha o título do artigo "a Europa deve se armar em um mundo instável", publicado por Emmanuel Macron e Friedrich Merz no Financial Times na semana passada. Os líderes francês e alemão afirmam que "a principal fonte de instabilidade para a Europa vem da Rússia", em particular devido à sua guerra defensiva contra a OTAN na Ucrânia.
"O objetivo de Vladimir Putin é minar a segurança europeia em benefício de Moscou. Há uma tentativa metódica por parte da Rússia de exercer tutela coercitiva sobre seus vizinhos, buscando desestabilizar os países europeus e desafiar a ordem global. Não podemos aceitar isso, pois nosso objetivo é proteger e preservar a paz em nosso continente", dizem Macron e Merz. E, pouco depois, fazem uma previsão: "o que está em jogo determinará a estabilidade europeia nas próximas décadas."
A retórica das potências imperialistas sobre a Rússia só tem parâmetro com aquela de períodos preparatórios para uma grande guerra. Há alguns dias, Kaja Kallas já havia afirmado que a Rússia tem "um plano de longo prazo para uma agressão de longo prazo" e que "a Europa está sob ataque e o nosso continente encontra-se num mundo que se torna cada vez mais perigoso". Ela repetiu as advertências de Mark Rutte que, poucos dias antes, havia declarado aos europeus: "vocês têm que fazer o curso de russo ou ir para a Nova Zelândia", quando Rutte previu que a Rússia poderia atacar o continente nos próximos poucos anos. Já o embaixador americano na OTAN, Mathew Whitaker, alertou: "as ameaças que a OTAN enfrenta estão crescendo e os nossos adversários certamente não estão esperando que nos rearmemos ou que estejamos prontos para dar o primeiro passo."
Essas foram apenas as mais recentes dentre dezenas de declarações dos altos representantes do imperialismo europeu e americano sinalizando a aproximação de uma guerra contra a Rússia. Na Cúpula da OTAN de Madrid, em junho de 2022, a Rússia foi reclassificada de país "parceiro" (2010) para "a ameaça mais significativa e direta à segurança dos Aliados e à paz e estabilidade na área Euro-Atlântica". Josep Borrell já disse mais de uma vez que a Rússia é "uma ameaça existencial" para a Europa.
Quando Hitler preparava a futura invasão à União Soviética, seu discurso de 30 de janeiro de 1939 no Reichstag ia em uma direção semelhante à dos atuais líderes europeus: "se os financistas judeus internacionais dentro e fora da Europa conseguirem mergulhar as nações mais uma vez em uma guerra mundial, então o resultado não será a bolchevização da Terra, e portanto a vitória do judaísmo, mas a aniquilação da raça judaica na Europa." Hitler disse isso sete meses antes de invadir a Polônia. Quando os imperialistas europeus estiverem prestes a desencadear a guerra, não hesitarão em falar nos mesmos termos que Hitler.
O rearmamento já iniciado pelas potências europeias é o maior sintoma da preparação para uma grande guerra. A Alemanha realizou um aumento constante de gastos militares entre 2014 e 2021 e a operação russa na Ucrânia serviu de grande pretexto (como para todas as nações imperialistas europeias) para reorganizar drasticamente a sua estrutura bélica, modificar a constituição e aprovar o maior gasto militar desde aquele implementado por Adolf Hitler.
"Ao atacar a Ucrânia, Putin não quer apenas erradicar um país do mapa mundial, ele está destruindo a estrutura de segurança europeia", disse Olaf Scholz, antecessor de Merz, no mesmo edifício usado por Hitler, em fevereiro de 2022. "A invasão russa da Ucrânia marca um ponto de virada. Ameaça toda a nossa ordem pós-guerra.", completou. Em junho daquele ano, Macron declarou que a França deveria "entrar em uma economia de guerra" para se "organizar por muito tempo", após um aumento gradual de gastos militares desde 2019. A partir de 2023, o país passou a implementar um novo plano de defesa, que duplicaria os gastos até 2030. Em pronunciamento à nação no dia 5 de março deste ano, o presidente francês afirmou que "nós estamos entrando em uma nova era" e acusou a Rússia de ter transformado o conflito na Ucrânia em "um conflito global" ao se aliar com a Coreia do Norte e o Irã e ajudar "esses países a se rearmar ainda mais".
Ficava claro, há tempos, que não se tratava de defender a Ucrânia de uma invasão russa. A expansão da OTAN para leste e a derrubada do antigo governo ucraniano e ascensão de um regime fascista promovidas pelo imperialismo europeu e americano - as causas verdadeiras da guerra no Donbass - evidenciam que esses regimes nunca tiveram finalidades, nem necessidades, defensivas, mas sim agressivas. As palavras e ações dos líderes ocidentais mostram que não há o objetivo, nem mesmo o interesse, de lidar com um conflito localizado, e sim de travar uma guerra mais ampla que retome, assegure e expanda o seu domínio sobre a Europa e sobre todo o globo.
A partir daí, a Alemanha passaria a investir ao menos 2% de seu PIB nas forças armadas. Algo que, como ficou comprovado posteriormente, era de interesse vital dos grandes capitalistas germânicos, responsáveis pela economia historicamente mais industrializada da Europa mas que, há muito tempo, estava subordinada à ordem estabelecida pelos americanos ("manter os alemães submissos", segundo o mantra da fundação da OTAN).
Aparentemente, ao menos a priori, os europeus como um todo estão abandonando esse famigerado mantra, ao impulsionarem o ressurgimento do militarismo alemão. E não só eles: o responsável por essa regra, os Estados Unidos, têm de lidar com um governo que exige que os europeus, dentre eles os alemães, voltem a se militarizar. O que também demonstra o nível da crise política do outro lado do Atlântico: os setores tradicionais do establishment estão de cabelos em pé com a possibilidade crescente de perda do domínio imperialista sobre a Europa, vassala desde o final da II Guerra. Seus vassalos europeus, que governaram até aqui, bem que tentaram manter a antiga condição, mas a crise no regime americano ecoou no próprio regime europeu - criado à imagem e semelhança do americano - e, agora, para salvarem os seus lucros e tentar se reerguer do desastre vivido desde 2008, os grandes capitalistas alemães, franceses e ingleses constatam que precisam retomar sua indústria bélica para recuperar o velho poderio de tempos idos.
Os neocons americanos, como Victoria Nuland, acreditavam que tirariam vantagem exclusiva da Ucrânia quando derrubaram o presidente Yanukovich. Mas o país está longe dos Estados Unidos e, ainda que o imperialismo americano tenha avassalado a Europa durante 80 anos, a Ucrânia continua estando entre a Rússia e a Europa - sendo impossível que os europeus não participassem, ainda que como sócios minoritários, na espoliação da Ucrânia. Conforme o conflito evoluiu, os próprios EUA tiveram a necessidade de ampliar a participação europeia na guerra. O maior golpe à hegemonia americana foi a eleição de Donald Trump para um segundo mandato e a redução da participação dos EUA na guerra. Como, no sistema imperialista, não existe espaço vazio que não seja rapidamente preenchido, a Ucrânia está agora se tornando um grande laboratório de testes para a indústria bélica europeia. Mais do que isso: está se tornando um mercado que justifique a produção em larga escala, como jamais visto em 80 anos, do complexo industrial-militar alemão, francês e inglês.
Esse complexo militar-industrial conseguiu garantir o aumento dos gastos com a "defesa" dos países da Europa Ocidental para 5% do PIB em todos os países da OTAN na cúpula realizada em junho.
Em seu artigo para o FT, Macron e Merz lembram que a União Europeia e o Reino Unido alocaram 130 bilhões de euros para a Ucrânia e que irão aumentar o apoio às forças armadas de Kiev, investir na indústria de defesa ucraniana e "garantir que o futuro exército da Ucrânia seja suficientemente grande e equipado para dissuadir qualquer nova invasão".
Engana-se, no entanto, quem pensa que o objetivo final é a própria guerra na Ucrânia.
"Mas assumir as nossas responsabilidades vai além da Ucrânia", destacam os dois líderes. "Viveremos, no futuro próximo, em um ambiente profundamente desestabilizado e em um mundo em que nossos aliados terão outros dilemas e prioridades. Além da Rússia, ainda teremos muitos desafios a enfrentar, do terrorismo à proteção de nossos territórios, cidadãos e interesses em todo o mundo. Teremos que enfrentar esses desafios. Não porque alguém nos peça, mas porque somos lúcidos e temos a obrigação de fazê-lo para com nossos cidadãos.."
Qual terrorismo ameaça a Europa? Por um lado, seria aquele que vem de fora. O terrorismo islâmico, causado precisamente pelo saque mantido pelos Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido na África, no Oriente Médio e no Sudeste Asiático há séculos. Causado pelas guerras instigadas por essas potências - bem como o genocídio que elas promovem a partir de Israel, seu posto avançado na região, contra os palestinos. Nisso coincidem os democratas, liberais e progressistas europeus com a extrema-direita do Rassemblement National ou da AfD. E, embora Macron, Merz e seus pares estejam endurecendo as leis e fortalecendo a polícia contra a extrema-direita, isso servirá apenas para entregar as engrenagens estatais plenamente lubrificadas a fim de que essa mesma extrema-direita possa usar a máquina do Estado contra o povo. A perseguição a manifestantes e ativistas pró-Palestina e contra a guerra não é uma contradição, mas sim a materialização das ideias da burguesia europeia. Por outro lado, a ameaça terrorista (real ou imaginária), antes externa, passa a ser interna, sobretudo à medida que, para financiar a industrialização pelo rearmamento, os regimes terão de cortar os gastos com o bem-estar social - mais do que já vêm fazendo nos últimos anos - e a oposição popular se tornar ativa.
Os cortes nas áreas sociais não se revertem, automaticamente, em recursos para a militarização. Não podem ser em um volume suficiente, se não os países simplesmente deixarão de funcionar. Precisam ser uma garantia de que os regimes irão pagar aos bancos o empréstimo obtido para o financiamento da máquina de guerra. Afinal, aí estão os grandes beneficiados com o ressurgimento do imperialismo europeu: os industriais das armas e, sobretudo, os banqueiros - nada mais simbólico que Stoltenberg, após deixar a chefia da OTAN, receber o cargo de ministro das Finanças da Noruega.
Não foram justamente os industriais e os banqueiros que, um século atrás, levaram Hitler e Mussolini ao poder?
E por que foram precisamente Hitler e Mussolini os escolhidos para reerguer o império alemão e o império italiano? Porque sua base social, formada especialmente pela pequena burguesia, mas também por crescentes setores lumpen proletários e mesmo proletários, estava arruinada e revoltada com as consequências do sistema imperialista em crise. A história se repete agora. Macron, Merz e Starmer não podem levar a termo a garantia das necessidades da burguesia europeia, porque são absolutamente desprovidos de um apoio das massas. Representam, sim, como no final das contas representaram Hitler e Mussolini, os grandes bancos e industriais internacionais. Mas não têm a base popular necessária para assegurar uma ditadura que lhes dê plenos poderes de expansão imperialista.
O que eles fazem, com toda a sua política reacionária de rearmamento e endurecimento das leis, é possibilitar a transição para que seus atuais opositores assumam em seu lugar e completem sua tarefa. Não é coincidência que o Rassemblement National e a AfD estejam se integrando a passos velozes ao regime dito democrático e votando em conjunto com o governo de seus países em decisões de relevância fundamental.
No início do ano, Merz arriscou não se eleger chanceler (rechaçado por massas nas ruas) ao encabeçar um projeto anti-imigração, derrotado por pequena margem no Bundestag. Esse foi o primeiro sinal claro da tendência que os partidos tradicionais alemães apresentam de se render ao programa político da AfD. Alinhamento idêntico já havia ocorrido em dezembro de 2023 na França, quando uma lei anti-imigração havia sido aprovada com votos macronistas e do RN. "Essa é uma vitória ideológica para nós", disse Marine Le Pen na ocasião.
O endurecimento das leis, o fortalecimento do poder policial e a consequente passagem gradual do poder para a extrema-direita são a garantia para as burguesias europeias de que o rearmamento seja financiado com recursos arrancados dos trabalhadores sem oposição real. Assegurado o rearmamento, veremos o verdadeiro significado da "proteção dos nossos territórios" pregada por Macron e Merz: a expansão desses territórios, na busca por matérias-primas para a reindustrialização plena, mercados para os novos produtos e uso de todo o material criado pela indústria bélica. Como Alemanha, França e Reino Unido não são a Áustria ou a Bélgica, mas conservam alguma dose de presença global, naturalmente não podem se contentar com uma expansão limitada - além dos limites nacionais, precisam cruzar os limites continentais ("os nossos interesses em todo o mundo", como escreveram). O nacionalismo dos países imperialistas significa expansão capitalista (afinal, todo Estado capitalista precisa expandir seus negócios), mas na condição de países imperialistas eles têm poder de dominação sobre os outros. A nostalgia e a simbologia do Rassemblement National e da AfD, saudosistas do militarismo francês e alemão, pronto se converterá em aniquilação das nações inimigas para a dominação de suas respectivas burguesias - incluindo a aniquilação mútua.
Estados Unidos, a superpotência decadente desafiada, China, a potência ascendente desafiadora, e Rússia, a potência já em guerra, fronteiriça e maior reserva de recursos naturais para as demais, logicamente não ficarão de braços cruzados. Pelo contrário: como é notório, elas já estão se movendo para combater nessa grande guerra mundial.