
Raphael Machado
Uma repartição do mundo em linhas multipolares - uma nova Ialta - dirigida pelos EUA representaria apenas uma multipolaridade incompleta - mais uma "tripolaridade" sino-russo-estadunidense do que qualquer outra coisa.
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No início de dezembro de 2025, a Casa Branca divulgou uma nova "Estratégia de Segurança Nacional", um documento em que o governo dos EUA apresenta as suas diretrizes concernentes à própria segurança nacional. Em outras ocasiões nós já apontamos para o fato peculiar de que a concepção estadunidense de "segurança nacional" era singular em ser a única no mundo a abarcar eventos e situações que se desdobram a milhares de quilômetros de distância.
Em geral, as concepções de segurança nacional dizem respeito fundamentalmente às potencialidades internas e aos riscos representados pelo entorno de cada país em questão, abarcando, ademais, no máximo a liberdade de acesso a recursos importados vistos como vitais para a economia e para a defesa.
Tradicionalmente não é assim que dispõe a "segurança nacional" dos EUA. Esta é vista como tendo envergadura planetária, de modo que eventos nos recônditos da África, do Sudeste Asiático e da Ásia Central sempre puderam ser reinterpretados como afetando a "segurança nacional" dos EUA. Pelo menos do período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até anos recentes.
Essa nova doutrina de segurança nacional traz uma diferença significativa: a envergadura da segurança nacional dos EUA é "reduzida" ao chamado "hemisfério ocidental", especialmente as Américas - ainda que se preservem determinados interesses por regiões do mundo em que há certos recursos estratégicos.
Ótima notícia para a maior parte do resto do mundo, péssima notícia para os ibero-americanos.
Aqui poderíamos dizer que o documento estaria fazendo uma alusão indireta ou metafórica à Doutrina Monroe. Não. O documento tem a virtude de honestamente e abertamente declarar a retomada da Doutrina Monroe com a adição de um corolário Trump a ele. Se a versão original da Doutrina Monroe estava voltada especialmente contra a presença espanhola nas Américas e, em menor medida, contra a presença de outros países europeus, a sua atualização está claramente voltada contra as alianças e investimentos russo-chineses na região.
O documento admite a impossibilidade de forçar a ruptura de todas as conexões desse tipo, especialmente no caso de países que já estabeleceram relações profundas e são hostis aos EUA, mas Washington pensa ser possível convencer todos os outros países das Américas de que os acordos com esses parceiros, mesmo quando são menos custosos, envolveriam supostos "custos ocultos", como espionagem, dívidas, etc.
O problema para esse tipo de narrativa é que muitos países da região estão conscientes de que os "custos ocultos" ao lidar com os EUA são, na melhor das hipóteses, os mesmos. Escândalos de "grampos" contra gabinetes presidenciais ibero-americanos ainda estão frescos na memória regional, bem como o histórico de endividamento dos países da região com o FMI, majoritariamente dominado e influenciado pelos EUA.
Agora, está claro que os EUA utilizarão um conjunto de narrativas de legitimidade duvidosa para pressionar por uma "contribuição" para a "luta contra o narcoterrorismo", por exemplo, mas cujo verdadeiro eixo será a garantia do alinhamento geopolítico e o reconhecimento da hegemonia hemisférica dos EUA.
Nada disso é novidade, já que em inúmeros outros artigos anteriores eu já havia discorrido sobre o tema.
Em um artigo de novembro de 2024 em que eu comento sobre a Iniciativa Cinturão & Rota na América do Sul, eu aponto o seguinte:
"A Doutrina Monroe, que fez 200 anos em 2023, era aquela diretriz ideológica que impelia os EUA a afastarem a Europa da América Ibérica com o objetivo de serem a única grande potência a monopolizar e exercer influência sobre a região. Mas hoje a"ameaça"sentida por Washington não vem exatamente de Paris, Berlim ou Madri, ou mesmo Londres, mas de Moscou e Pequim.
E é tanto por causa do fortalecimento das relações russo-chinesas no continente quanto pela própria fragilização da hegemonia unipolar dos EUA - mais sentida na Eurásia, no Oriente Médio e na África - que os EUA se desdobram em um novo impulso monroísta na América Central e do Sul. Trata-se de tentar expulsar a"influência"russo-chinesa quanto de assegurar que a única potência americana serão os próprios EUA - nada de potências extracontinentais, nem da ascensão de qualquer país americano como potência."
De fato, isso já era evidente mesmo antes do início do novo mandato de Donald Trump. Este, especialmente através desse documento de Estratégia de Segurança Nacional, tão somente tem a virtude de explicitar o que já estava implícito há 10 anos, já que é desde o mandato de Barack Obama que podemos identificar uma retomada de um interesse mais atento por parte de Washington em relação à América Ibérica. É a partir do governo Obama que multiplicam-se em vertiginosa aceleração os casos de interferência dos EUA na região (enquanto, em contrapartida, o governo Bush é marcado por um enfoque no Oriente Médio e pela rápida expansão da OTAN).
Agora, momentos atrás neste texto eu apontei que tudo isso era uma "boa notícia para o resto do mundo", mesmo que não para os países ibero-americanos. "Boa notícia" porque o texto da Casa Branca aponta para um reconhecimento da inevitabilidade da multipolaridade. A nova doutrina estadunidense critica o caráter geograficamente ilimitado e indeterminado dos interesses externos ditos "estratégicos" dos EUA. Ela aponta para um desperdício de recursos e uma falta de foco que só prejudicariam a consecução de objetivos realistas por parte de Washington.
Nesse sentido, implicitamente, por mais que os EUA insistam em uma pretensão de "ajudar a Europa", "garantir acesso a petróleo no Oriente Médio" e estabilizar a "questão taiwanesa", ao mesmo tempo reconhecem, pelo menos de forma incipiente, a existência de "zonas de influência" de outras potências - mas não nas Américas.
Uma repartição do mundo em linhas multipolares - uma nova Ialta - dirigida pelos EUA representaria apenas uma multipolaridade incompleta - mais uma "tripolaridade" sino-russo-estadunidense do que qualquer outra coisa. O texto é explícito em situar as Américas como um todo submissas aos EUA, a Europa como "parceiro júnior" de confiabilidade duvidosa, o Oriente Médio maximamente descentralizado para benefício de Israel, e a África Subsaariana como espaço de competição de investimentos.
Não se trata apenas da China e da Rússia na América Ibérica, portanto, mas de uma interdição da emergência de uma potência rival dos EUA "ao sul do Rio Grande". Daí, inclusive, a insistência em garantir o alinhamento do Brasil, principal candidato ibero-americano a polo geopolítico autônomo.